As dívidas públicas devem ser encaradas com muita cautela
As dívidas públicas são um assunto muito sério na gestão macroeconómica de qualquer país e não podem, nem devem, ser encaradas de ânimo leve e podem ter com o crescimento económico uma relação de amor/ódio. Existem ferramentas económicas e econométricas que ajudam a estabelecer os limites de endividamento de cada país, bem assim como a sua sustentabilidade.
Não se pode, nem deve abordar esta variável macroeconómica ignorando os seus efeitos adversos, sobretudo a médio e longo prazo. No contexto da Teoria Económica são erradas e desprovidas de comprovação e validade científicas afirmações de que as dívidas são necessariamente amigas do crescimento económico ("grandes potências são grandes devedoras e desenvolvem-se com dinheiro que lhes é emprestado", opinião do Chefe de Estado angolano na recente visita a Portugal).
As classes políticas têm obrigação de, a este respeito, deterem uma atitude estratégica e pensar no que as dívidas públicas podem significar sobre a capacidade de crescimento das economias. Da qual, de resto, depende a sustentabilidade desses endividamentos, num autêntico círculo que tanto pode ser vicioso, quanto virtuoso.
E a economia angolana está a crescer pouco, bastante aquém do seu produto potencial e abaixo da taxa de crescimento demográfico (daí, mas também devido a outros factores, a elevada taxa de desemprego). Dois factos (taxa de crescimento económico de baixa intensidade e de crescimento demográfico de sentido contrário) que podem dificultar a recuperação do PIB para níveis mais abrasadores e contribuir para gerar expectativas negativas sobre a real e efectiva capacidade de ressarcimento, factor de afastamento do investimento privado estrangeiro e de subida das taxas de juro nos mercados financeiros internacionais.
Conhecem-se as teorias sobre o endividamento dos países, dos seus limites e da sua sustentabilidade e que no fundo convergem para uma máxima, "os países e os seus agentes económicos não devem viver acima das suas possibilidades". É o que pode vir a acontecer se esta nossa apetência de endividamento não se contiver e a corrida aos empréstimos, internos e externos, continuar a efectivar-se sem critério e estudos de avaliação, ou seja, sem se saber da capacidade de geração de retornos económicos e financeiros suficientes para o pagamento dos respectivos serviços.
Incluo neste receio as linhas de crédito, a pior maneira de criar dívida pública externa, porque está associada a uma série de defeitos e perversidades, de onde destaco: representa a exportação de desemprego pelos países que as concedem, trazem em seu bojo uma concorrência desleal face às empresas nacionais, servem de apoio ao crescimento das economias concedentes - as receptoras podem até experimentar períodos de contracção do seu crescimento pela influência negativa das importações (nomeadamente de bens de consumo final) provenientes desses países - aumento do consumo de bens finais culturalmente desajustados (alteração da escala de preferências dos consumidores nacionais), desincentivo à substituição de importações nos casos de as linhas de crédito serem concedidas às empresas desses países a taxas de juro baixas, não correspondem à entrada de dinheiro fresco para alimentar o nosso sistema bancário (todas as linhas de crédito representam afinal meras operações contabilísticas, registadas nos países concedentes), etc.
No final do dia, o País tem de ressarcir este tipo de dívidas. Aquando da permanência do primeiro ministro português em Angola, em Setembro do corrente ano, foi claramente dito que Portugal iria reforçar a linha de crédito para Angola em 500 milhões EUR para apoiar as exportações portuguesas para o nosso País.
Algumas justificações oficiais têm ido no sentido de que estes empréstimos portadores de dívida pública externa são necessários para se cumprir o programa de investimentos públicos, num montante extremamente (quiçá exageradamente?) elevado e numa circunstância de à economia nacional faltarem argumento e capacidade para gerar crescimento económico propiciador de aumento das receitas fiscais do Estado.
Não pode ser o investimento público - sempre com uma componente política muito forte (continuo a não entender, enquanto não me for demonstrado o contrário, a utilidade da construção do Centro Administrativo e a duvidar que a produtividade da Administração Pública melhore por esta via; ao contrário, facilmente demonstrável, é o incremento da eficiência da economia nacional se forem completadas as estradas que ruíram ou estão em mau estado de servir o País e a sua economia) - a condicionar a contracção de dívida pública, especialmente quando se não elaboram estudos comprovantes da sua utilidade, eficiência e eficácia. A lógica tem de ser precisamente a contrária: a capacidade e possibilidade de endividamento é que devem condicionar o programa de investimento público, devidamente avaliado.
Quanto à dívida pública interna igualmente aparecem efeitos nefastos aconselhadores de prudência no afã de a aumentar. São os conhecidos efeitos de evicção ("crowding out"). O Estado não é o único agente económico e pretende- se que deixe de o ser rapidamente, dando lugar à economia privada, cujos agentes necessitam de crédito abundante e a baixo custo. Quando as dívidas públicas internas aumentam mais do que o teoricamente recomendável acabam por exercer uma concorrência desleal face ao sector privado, contribuindo para a rarefação de financiamentos e a subida das taxas de juro.
Se a isto se juntarem os conhecidos custos de contexto, facilmente se entenderá a dificuldade de, até 2022, a economia nacional crescer a uma taxa média anual de 3% (este é o meu ponto de vista, baseado na série de constrangimentos existentes, na queda do preço do barril de petróleo - suporte fundamental das receitas fiscais do Estado e atenuante de incremento de dívida pública - e numa desconfiança ainda presente sobre a real capacidade de Angola atacar, com sucesso, a crise financeira, económica e social e erradicar ameaças, ainda que veladas, à estabilidade política).
Se porventura ocorrer mais uma recessão económica em 2018 (as Contas Trimestrais do INE apontam para -4,7% no I Trimestre e -7,4% no segundo e o Relatório de Fundamentação do OGE 2019 para -1,1% de variação real total), então a taxa de 3% pode reduzir-se para 1,9%, admitindo que as taxas previstas no PDN 2018-2022 aconteçam para 2019 até 2022. Neste contexto, será, portanto, difícil acreditar que uma parte da solução para a retoma do crescimento económico passe pelo aumento da dívida pública.
Os documentos oficiais garantem que a dívida pública representa actualmente 70,5% do PIB (Relatório de Fundamentação do OGE 2019), ou seja, 88,8 mil milhões USD e a dívida governamental cerca de 84 mil milhões USD (incluída na primeira). O respectivo serviço representa uma punção muito expressiva do valor da actividade económica anual (sem petróleo), em recessão desde 2016 de acordo com informações das Contas Nacionais e mesmo do Ministério da Economia e Planeamento.
A China é o principal credor de Angola, com uma dívida total de 23,5 mil milhões USD, valores referentes a 2017. Adicionando os 6 mil milhões USD referidos pelo Presidente da República respeitantes a contratos assinados durante a sua recente visita a este país, ter-se-á um montante de 31,1 mil milhões USD, mais de 58% do montante total da dívida pública.
Mesmo sem mais ou outras considerações, a dívida pública actual é um fardo para a economia, as empresas, as famílias e os cidadãos, que vão ser obrigados a pagar mais impostos para que o Estado se ressarça destes comprometimentos e compromissos assumidos em nome da economia nacional. Se as garantias reais continuarem a ser dadas pelo petróleo - o Presidente já disse que este tipo de procedimento vai ter de passar a ser passado - então dentro de algum tempo as receitas em divisas deixarão de existir, pelo menos enquanto o País não apresentar outros argumentos para a sua substituição por outras exportações.
Alternativas: investimento privado estrangeiro, gestão rigorosa da dívida pública actual, avaliação criteriosa dos investimentos públicos, crescimento vigoroso do PIB não petrolífero (o Relatório de Fundamentação do OGE 2019 prevê 1% para o corrente ano e o PDN uma taxa média anual de 5% até 2022, podendo baixar para 4,8% se se confirmar o valor para 2018 1), controlo orçamental exigente e austero (deverão existir cortes nas despesas de funcionamento do Estado que não sejam fundamentais para o seu funcionamento eficiente) e criação de poupança pública pela maior transparência e eliminação dos focos de desvio de dinheiros públicos.
(1) Ainda assim, as previsões do PDN para o não petrolífero parecem muito mecanizadas (sempre a aumentar até 2022) e de certo modo compensadoras da quebra do crescimento do petróleo, para que o PIB global cresça às taxas estabelecidas.
Alves da Rocha escreve quinzenalmente
(artigo publicado na edição 501 do Expansão, de sexta-feira, dia 30 de Novembro de 2018, disponível em papel ou versão digital com pagamento em Kwanzas. Saiba mais aqui)