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Grande Entrevista

"Se perguntar ao Governo a quantidade de terras concedidas desde 2004 ninguém sabe responder"

BERNARDO CASTRO, COORDENADOR DA REDE TERRA

Estranhamente fora das agendas políticas nos últimos anos, depois de períodos de forte presença na comunicação social, a gestão fundiária e o acesso à terra são um entrave para o desenvolvimento do País. Sociedade civil clama por uma nova abordagem.

A Lei de Terras foi aprovada em 2004 e tem quase 20 anos de vigência. Considera que a legislação precisa de ser actualizada, até porque as leis são dinâmicas e devem-se adequar ao contexto?

A questão fundiária é muito sensível, é um tema político mas que toca a vida das pessoas em várias dimensões. Eu sempre digo: nós não precisamos de andar atrás da lei, é a lei que deve estar atrás do homem. As leis existem para defender os nossos interesses, quando isso deixa de acontecer devem ser alteradas. A legislação fundiária está em revisão, fruto de recomendações da sociedade civil, para se conformar à Constituição de 2010. Temos uma Lei de Terras aprovada em 2004, cujo processo de revisão não foi terminado até hoje. Então não sabemos, por exemplo, se esta legislação está em conformidade ou não em relação à Constituição. Devo-lhe confessar que essa legislação, sobretudo a Lei de Terras (porque o pacote envolve outras leis), não serve os interesses actuais.

Porquê?

Primeiro, é uma lei que não garante segurança. Não protege quem pretenda um dia investir no sector, por exemplo, da agricultura ou da pecuária. Era para ser uma lei de bases para, a partir daquele ponto, desenvolver nova legislação. Mas não foi isso que ocorreu. Fomos impondo alguma pressão junto do Ministério das Obras Públicas e Ordenamento do Território, mas infelizmente a revisão da lei foi levada para labirintos que se desconhecem. E era urgente a conformação com a Constituição. Como até hoje estamos assim, isto levanta alguns questionamentos.

De que tipo?

Que interesses estão por detrás deste esquecimento, então uma lei de 2004 não é revista até agora, falamos de um tema importante. Isto deve ter alguma explicação. Continuamos com os mesmos conflitos, cada vez mais expressivos, continuamos com o cadastro disperso, continuamos com a mesma Lei de Terras. Porquê? É aqui onde começam as especulações. No actual cenário, os vastos interesses da geopolítica dos recursos naturais podem estar por detrás da captura destas coisas, podem influenciar as decisões e isto vai se arrastando. É uma pergunta que dirigimos ao Governo.

É possível indicar um exemplo concreto destes interesses nacionais ou internacionais a se manifestarem em Angola?

As terras, no actual contexto internacional e mesmo no continente africano, são uma mina, uma pólvora que vai gerar muitos conflitos. Já estão a gerar, aliás. O fenómeno da "grilagem" de terras funciona como uma máfia, que trabalha com instituições e pessoas bem posicionadas, geralmente ligadas à legislação (advogados, juízes), pessoas próximas do Executivo ou provenientes de algumas or[1]ganizações financeiras. Digo isto só para caracterizar os grupos que actuam no fenómeno da "grilagem" de terras.

São movimentos que têm interesses na apropriação de recursos naturais?

Exactamente, mas as grandes preocupações que temos em Angola, e se calhar é uma das provas do que estamos a dizer, estão no aproveitamento das terras e na entrega de concessões. Quando se entrega uma concessão, o beneficiário deve provar a capacidade de aproveitamento útil dessas terras. No nosso caso, até hoje o Estado não fez nenhum levantamento para verificar qual o aproveitamento útil das terras concedidas. E mesmo assim continua a conceder mais terras.

A Rede Terra defende a reversão de concessões quando os níveis de aproveitamento estão abaixo do previsto?

Quando não se faz o aproveitamento útil efectivo das terras durante três anos consecutivos, ou seis anos interpolados, as terras deviam ser revertidas a favor do Estado. Quem perde com esta inacção? Todos nós. O próprio Estado.

Mas este formato de concessões enormes é uma realidade em Angola. É fácil identificar casos concretos.

Em 2015, penso eu, houve aquela iniciativa do agronegócio, quando o Banco de Desenvolvimento de Angola (BDA) financiou várias concessões que justificaram a saída de financiamentos. Imagine a área que essas empresas todas ocuparam, aquilo são territórios europeus. São milhões e milhões de hectares. Se verificar o aproveitamento útil - e há um estudo sobre isso - é triste, esses projectos colapsaram. E as pessoas serviram-se dos empréstimos para outros fins. O que preocupa a Rede Terra é o facto de muitas dessas concessões terem sido entregues sem a participação das comunidades, o que sobrepõe direitos, mais uma vez. A captura internacional de terras africanas serve-se exactamente da fragilidade das instituições que lidam com estes assuntos.

Os conflitos de terras em Angola estão a aumentar ou a diminuir de intensidade?

Aumentaram significativamente, agora temos mais problemas, mais conflitos de terras do que tínhamos no pós-guerra. Os conflitos mais expressivos não são apenas por questões de ocupações de terras. Também estamos no quadro de conflitos que decorrem da saturação dos ecossistemas por causa das alterações climáticas.

É um tema profundo, devido às suas interconexões com outras sabedorias, e que ao mesmo tempo envolve fortes interesses nacionais e internacionais. Qual deve ser a abordagem para mudar o cenário que descreveu?

Nós temos um problema de base: temos instrumentos normativos, leis e isso tudo. Na minha opinião, as leis servem para disciplinar as formas de uso, ocupação de terras e evitar conflitos, regular mais ou menos as relações entre as pessoas. Mas estas leis não têm aquilo que é o básico, ou seja, o pilar. Nós estamos a trabalhar num País que não tem instrumentos destinados para as questões fundiárias, não temos uma política nacional de terras em Angola. Então para que objectivos políticos concorrem as normas criadas? Essa é a grande questão. No fundo, as normas estão a trabalhar para o vazio.

Não sabemos para onde vamos ao nível da gestão fundiária?

Sim, pergunte ao Governo que objectivos se pretende atingir com a gestão fundiária e que metas foram traçadas. Ninguém lhe vai responder, porque não existe esta informação. Estamos a remar para um destino praticamente incerto. Esta é a questão base. Primeiro, o País tem de definir em matéria de governação fundiária quais são os objectivos estratégicos. E depois a legislação deve trabalhar para se encaixar naqueles conceitos. O segundo ponto crucial também deriva do contexto mas está relacionado com o cadastro fundiário em vigor, que está desactualizado e disperso, o que é grave. A dispersão do cadastro fundiário significa dizer que há acessos indevidos ao sistema. E que o processo de forjar documentos é um dos problemas mais graves no País. Neste momento, se perguntar ao Governo quantas terras já concedeu desde 2004 e a que área total isso corresponde, ninguém sabe responder.

(Leia o artigo integral na edição 696 do Expansão, de sexta-feira, dia 14 de Outubro de 2022, em papel ou versão digital com pagamento em kwanzas. Saiba mais aqui)