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Grande Entrevista

Angola deve exigir que quem repatria deve identificar a origem do dinheiro

Grande Entrevista a HONAZI FARIAS

Crítico das leis que permitem a regularização de bens no exterior, sem acauletarem a repatriação e o esclarecimento sobre a origem do dinheiro, o ex-investigador da Polícia Federal brasileira defende a expropriação dos ganhos ilícitos como instrumento de luta contra os crimes económicos.

Falou-se muito, nesta 1.ª Conferência Internacional sobre Fraudes e Delitos Económicos [que decorreu em Luanda], do branqueamento de capitais. Qual é o papel do branqueamento nos crimes económicos?
Ele é primordial. Não existe a grande corrupção sem o branqueamento, porque não há como justificar esses valores.

A lavagem de dinheiro é o que possibilita, já na terceira fase, que é a da integração, usufruir do dinheiro que se obteve em função de um crime antecedente. A lavagem de dinheiro é o parente mais próximo de qualquer tipo de crime?
im. Quando você quer usufruir do dinheiro que foi obtido de maneira ilícita. A lavagem pode ser feita no próprio país, como no exterior, remetendo-o para fora. Posteriormente, esse dinheiro pode ser utilizado noutros países ou ser recambiado para o país de origem. Quem faz a lavagem não está preocupado com a tributação. Ele paga o tributo, porque quer ver esse dinheiro legalizado.

Nesse caso, como é que justifica a existência do dinheiro?
No caso do Brasil, tivemos duas leis, no governo anterior, que possibilitaram a repatriação de recursos sem que fosse necessário identificar a origem do dinheiro. Bastava dizer que possuía recursos e que queria repatriá-los para o Brasil. Pagava um tributo de 15% e legalizava esse dinheiro.

Mas a lei brasileira clarificava que não abrangia dinheiro de proveniência ilícita.
Como não precisava identificar a proveniência, podia ser de fontes lícitas ou ilícitas. Como o dinheiro estava no exterior, a gente parte do princípio que não foi comunicado ao ente fiscal, logo, já tinha sido cometido um crime, o de sonegação fiscal, que é um crime antecedente.

As leis de repatriamento estão a favorecer a criminalidade?
Existe uma discussão doutrinária a respeito disso. Como investigador, partilho do entendimento que sim. Mas para o Estado o que interessava era obter os tributos, independentemente da origem do dinheiro, indo ao encontro de um princípio que foi cunhado na Idade Medieval, que é o princípio do direito tributário, chamado non olet, o dinheiro não tem cheiro.

Diz isso com sentido crítico?
Sim. Embora esse dinheiro sirva para o Estado manter serviços voltados para a sociedade, não pode ser feito a qualquer preço, porque o certo sempre vai ser certo. A verdade, enquanto verdade, liberta. Agora mentira escraviza. Então, um erro, por mais que você tente justificá-lo, não será justificado.

Angola aprovou este ano uma lei de repatriamento de capitais e prepara-se para receber os montantes que venham ao abrigo dessa lei. Enquanto investigador e especialista nestas questões, que conselhos daria ao Governo?
Primeiro, deve fazer constar no seu instrumento legislativo que aquele que quer repatriar determine a origem do dinheiro.

A lei diz que não vai perguntar. Não vai perguntar porquê?
Porque se perguntar vai reduzir o nível de repatriação. E veja só! No caso da lei brasileira há mais uma curiosidade. Você só precisava informar que tinha esse dinheiro, não tinha de repatriá-lo.

O Estado brasileiro só se preocupou com a arrecadação de receita fiscal?
Sim.

No caso de Angola, quem quiser beneficiar de isenção de tributação e de responsabilização criminal tem de repatriar esses valores. Mas a repatriação é de facto ou de direito?
Se a repatriação for de facto, ele pode permanecer fora, basta que você informe ao ente fiscal que possui dinheiro ou bens - pode ser uma participação societária, bens móveis e imóveis. Quando você pega o universo de bens em espécie acaba por reduzir o campo de incidência na tributação. Para ter uma ideia, recentemente, no Brasil tivemos a apreensão de 16,5 milhões USD do filho de um governante de um país africano.

O filho do Presidente da Guiné Equatorial?
Sim. Desses 16,5 milhões USD, 15 milhões eram em relógios. Esses bens são valiosos, logo, se eu determinar que essa repatriação é só de recursos você reduz o espectro de incidência tributária.

É necessário uma lei para fazer o repatriamento ou os Estados têm como chegar ao dinheiro que saiu do país? No caso brasileiro foi necessário uma lei. Porquê?
Porque para fazer o repatriamento tem de se fazer uma investigação sobre a saída ou a manutenção ilegal desse dinheiro fora. Segundo, você tem de ter um tratado, acordo ou um protocolo internacional, seja ele bilateral ou multilateral, para o repatriamento. Nestes últimos 10 anos, o Brasil, por intermédio do Departamento de Recuperação de Activos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), ligado ao Ministério da Justiça, estabeleceu acordos com diversos países, de onde o Brasil está a conseguir repatriar valores que saíram, por intermédio de lavagem de dinheiro de países, como a Suíça. Veja o caso, por exemplo, da Odebrecht, da Petrobras.

Esse dinheiro foi descoberto ao abrigo da Lava Jato?
A Operação Lava Jato é a que tem maior atenção da imprensa, mas não é a primeira. Nós temos inúmeras operações. Eu diria que o grande case study foi o caso Banestado (de 2003), que envolveu um banco estatal. Primeiro transportava-se o dinheiro, por intermédio de mulas ou carros fortes, para doleiros brasileiros radicados no Uruguai e do Uruguai remetia-se esse dinheiro, através de contas de concentração, denominadas ónibus, para uma conta na filial de Nova Iorque do Banestado. De lá esse dinheiro era pulverizado para alguns paraísos fiscais e, posteriormente, retornava como investimento para o Brasil.

O banco ainda existe?
Não, foi comprado pelo Santander. Era um Banco do Estado de S. Paulo. No caso do Banestado, nós tínhamos as três fases da lavagem: a colocação dos recursos no sistema financeiro, via doleiros, numa conta ónibus, na filial do Banestado. A ocultação, que tenta apagar o rasto e fazer a pulverização desse dinheiro por vários paraísos fiscais. E, finalmente, a integração do dinheiro, quando regressava ao Brasil, como investimento, ou ia para a compra de imóveis em Miami. Houve uma subida muito grande na compra de imóveis por brasileiros em Miami e em Portugal.

A operação envolveu vários Estados?
Sim, se o Brasil não tivesse acordos de cooperação, em matéria jurídica e policial, com esses Estados, a polícia chegava a um determinado ponto e não conseguia mais informações para fazer o rastreamento do dinheiro. Veja, que o princípio básico do combate à lavagem é seguir o dinheiro. Nas ilhas Virgens, por exemplo, a lei não permite investigar se uma pessoa tem dinheiro lá. E aí há uma interrupção na investigação. É nessa fase que se dá a ocultação. E nós não conseguimos seguir porque, em determinado momento, o país por onde esses valores tinham passado não fornecia as informações hábeis a produzir prova.

A acção das polícias está sempre limitada pelos países fiscais?
Sim. Isso é uma realidade inafastável, até porque, como foi falado nesta conferência, um dos maiores paraísos fiscais existentes é uma das maiores bancas do mundo, a City of London. Há países que mudaram a sua forma de imperialismo para o imperialismo económico.

"As empresas com compliance têm maior valor agregado"

Veio falar sobre investigação corporativa e compliance. O que é isso?
A investigação corporativa é privada e surge quando é cometida uma fraude dentro da empresa, que é detectada pelo seu sistema de compliance. Pode ser um simples desvio de suprimentos da cadeia logística da empresa, como um acto de corrupção praticado por um gestor para se afirmar num mercado.

O sucesso, neste campo, depende das empresas?
Sim. Aqui em Angola, pelo que me falaram, ainda não existe uma lei anti-corrupção voltada para as empresas, para as pessoas colectivas. Mas isso é uma realidade inafastável. Hoje uma boa parte dos países implementaram ou estão a desenvolver as suas leis anti-corrupção, porque é uma exigência dos órgãos de comércio e para um país gerar investimentos. As grandes empresas para investirem num país têm de ter uma área de compliance, porque o que acontece aqui, repercute-se na sua imagem noutros países.

O compliance é uma aposta no futuro das empresas. Os líderes das empresas estão conscientes disso?
As médias e pequenas ainda não, porque representa um custo. As grandes empresas já perceberam que é um investimento. Hoje existem estudos que mostram que as empresas que possuem compliance têm maior valor agregado. Segundo, as empresas que não possuem são insusceptíveis de receber investimento externo e vêem, no caso de interesse na sua compra, o seu valor depreciar.

Os planos de negócios das empresas devem incluir o compliance?
Hoje, no Brasil, sim. Qualquer empresa que queira fornecer bens e serviços para a União [Federal] tem de ter compliance. Também já existem 3 ou 4 estados que aprovaram leis estaduais com essa obrigatoriedade. Nos programas dos candidatos a cargos de governador ou Presidente da República há um capítulo dedicado ao compliance. A lei é de 2013 e é uma realidade que não terá volta. Essa obrigatoriedade de ve estar na lei? Sim, ajuda inclusive a fazer a mudança cultural.

"O que acontecia no Brasil era a certeza de impunidade"

A sua intervenção nesta conferência foi mais dirigida às polícias ou aos empresários?
Fui convidado para falar sobre investigação corporativa e compliance. Mas como tínhamos um corpo grande de polícia, fiz intersecções entre as duas actividades.

Qual é a grande diferença?
Na actividade de investigação criminal há muito maior possibilidade de aprofundar, porque as acções que envolvem a violação de direitos pessoais, individuais, podem ser realizadas desde que haja autorização judicial. Na investigação privada há restrições. Não se pode pedir quebra de sigilo bancário, de sigilo fiscal, intercepção de telefone... Mas uma pode aprender com a outra, porque a investigação privada, por estas dificuldades, foi aperfeiçoando as técnicas, principalmente no que diz respeito a meios informáticos. Hoje temos empresas especializadas em desenvolver várias ferramentas.

A investigação criminal recorre a esses serviços?
Muitas vezes, principalmente, quando não desenvolve essas ferramentas de forma customizada. Posso dar um exemplo. A Polícia Federal brasileira utiliza algumas plataformas conhecidas no mercado, mas, em virtude do seu alto preço e das limitações orçamentais, houve uma junção de peritos para desenvolverem ferramentas customizadas para o nosso trabalho e, hoje, elas oferecem os mesmos mecanismos, e às vezes melhor, do que na área privada. Nós temos uma coisa, que na actividade privada é muito difícil.

Qual é?
O laboratório. A gente pega num caso e estuda. Por isso é que eu falei do Banestado, que nos ajudou a desenvolver metodologias de investigação na área de lavagem de dinheiro. Hoje a operação Lava Jato tem um escritório de arquitectura de processos.

Qual é a sua função?
Antes preocupávamo-nos só com a deflagração da operação. Prendíamos as pessoas, apreendíamos as provas e, no dia seguinte, a equipa desfazia-se. Só ficava um delegado, um escrivão e dois agentes. E aí você tinha uma sala cheia de provas para analisar. Muitas vezes, isso acarretava prescrição. E, pior, a não recuperação de activos. Quando você faz uma investigação nesse campo, tem de ter uma dupla finalidade: responsabilizar criminalmente e retirar tudo o que a pessoa conseguiu por intermédio da sua actividade criminosa, senão é vantajoso. Assim, deixa de haver incentivo para o crime. E mais, você transforma isso num exemplo de profilaxia.

É isso que está a mudar no Brasil?
É. O que acontecia antes era a sensação, a sensação não, a certeza de impunidade, porque as pessoas detinham um poder económico e político muito grande e tinham a certeza que não iam ser alcançadas nunca.

A ideia que passa para o exterior é que está "toda a gente" envolvida. Há alguém que preserve a imagem limpa?
(Risos) Toda a vez que se generaliza incorre-se num erro. Existem muitas pessoas boas e que querem transformar. Se não fosse isso, não estaríamos a viver este momento. Olhe o que está a acontecer. Se você dissesse há cinco anos que um partido de direita teria possibilidade de ganhar um pleito no Brasil ninguém acreditaria. Foi por isso que se elegeu um palhaço, que é o Tiririca. Era o voto incrédulo.

Também permite que um candidato, com um discurso contra a democracia e a favor da ditadura, esteja à frente?
Existe aí muita guerra de contra-informação. O partido que se encontrava no poder não quer ser destituído e uma das coisas que diz é que o adversário quer acabar com a democracia. Não visualizo isso na sociedade brasileira de hoje. Mesmo quem vota Bolsonaro quer democracia, só que quer seriedade na condução da máquina pública, não quer discussões de género para crianças de pouca idade, não quer o envio de dinheiro para fora do país quando o Brasil necessita. Vou dar um exemplo. O nosso Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDES) mandou 12 bilhões de reais (4 mil milhões USD) para Angola, porquê?

O Brasil também já teve muitas ajudas externas...
Não sou contrário a essa ajuda. Mas, assim como aconteceu em Angola, aconteceu em Cuba e na Venezuela. E internamente? Como ficam os nacionais? Você paga uma tributação de quase 40% da receita do trabalho para não ter saúde, educação e segurança. Para onde está indo o dinheiro dos meus impostos?

Essas são as questões que estão hoje em cima da mesa?
Sim.

PERFIL: Ex-Polícia e Investigador
Consultor e professor nas áreas de Investigação Corporativa e Prevenção à Lavagem de Dinheiro em cursos de pós-graduação e MBA em Gestão de Riscos de Fraudes e Compliance, Honazi Farias actuou, durante mais de 26 anos, como delegado da Polícia Federal brasileira, no combate aos crimes contra o sistema financeiro nacional, lavagem de dinheiro, desvio de recursos públicos, crimes contra o património de instituições financeiras e empresas públicas da União. Foi delegado regional de combate ao crime organizado no Estado de Tocantins, chefe da Delegação de Repressão aos Crimes Patrimoniais no Estado do Espírito Santo e coordenador de Controlo Migratório e Segurança Aeroportuária no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo. Hoje dedica-se à área privada.

(Entrevista publicada na edição 498 do Expansão, de sexta-feira, dia 9 de Novembro de 2018, disponível em papel ou versão digital com pagamento em Kwanzas. Saiba mais aqui)