João Lourenço nega favorecimento do Estado aos grupos Carrinho, Gemcorp, Mitrelli e Omatapalo
Mas os dados não mostram exactamente isso como explicamos abaixo, mas também com uma matéria mais completa a publicar na edição em papel do Expansão que sai amanhã. Estes grupos cruzam de forma transversal a nossa economia e estão praticamente em todos os sectores. Leia e tire as suas conclusões
As empresas chinesas continuam a dominar as obras públicas no País, revelou hoje o Presidente da República, João Lourenço, quando questionado pelo Expansão sobre como justifica o facto de quatro grupos económicos (Gemcorp, Carrinho, Omatapalo e Mitrelli) terem ganho a maioria das obras, contratos de fornecimento e gestão do Estado e titularidade de outros bens económicos, na maioria dos casos por adjudicação directa ou contratação simplificada. O Presidente nega favorecimento do Estado a estes quatro grupos.
"Grande parte das empreitadas das obras públicas do Estado angolano contrariamente do que diz não está nas mãos destas quatro empresa e pelo menos uma não é dedicada a obras públicas. Quem tem neste momento a grande concentração de obras públicas no país continuam a ser as empresas chinesas, não apenas pelo número de projectos como também em valores avultadíssimos que representa", disse João Lourenço durante a entrevista concedida a cinco órgãos de informação (Expansão, TV Zimbo, Jornal de Angola, O País e agência Lusa) aos quais foi pedido o envio prévio de duas perguntas.
Nesta resposta a uma das duas questões enviadas a 31 de Dezembro pelo Expansão, o chefe de Estado acabou por referir-se somente à contratação de obras públicas, quando na verdade a relação destes quatro grupos empresariais vão muito além das obras.
Aliás, o Grupo Carrinho, a Gemcorp, o Grupo Mitrelli e a Omatapalo são as quatro estrelas no firmamento da contratação pública na era João Lourenço. Os negócios são tantos e para tantas finalidades e sectores económicos que se torna quase impossível juntar toda a informação. No entanto, é seguro que esta relação tem rendido chorudos contratos às referidas empresas.
"Nenhuma destas empresas estão nas grandes obras públicas, não sei onde foram buscar estes dados de que estes quatro grupos são privilegiados", reforçou.
Gemcorp - o facilitador internacional
João Lourenço começou por falar na Gemcorp, fundo sedeado em Londres, sublinhando que já financiaram Angola em 2,4 mil milhões USD, nos sectores da defesa e segurança, saúde e energia e água. Esta informação nunca tinha sido pública, uma prática recorrente no que toca às relações com a Gemcorp, que ao longo dos anos tem ganhado cada vez mais espaço em negócios com o Estado angolano. Este grupo tem criado empresas um pouco por tudo o que é paraísos fiscais e é uma espécie de intermediária entre linhas de financiamento internacionais e o investimento público em Angola. Actua no País como uma espécie de facilitador de financiamentos internacionais e ninguém sabe quem são os reais beneficiários deste grupo aparentemente com ligações à Rússia.
Nos últimos anos está envolvida em várias polémicas, desde financiamentos para o Estado pagar à Odebrecht as obras do Aproveitamento Hidroeléctrico de Laúca, em contratos lesivos para o Estado já que a construtora brasileira apenas recebeu 75% dos 400 milhões USD do financiamento e o resto ficou para o facilitador do financiamento, a Gemcorp.
Entretanto este fundo foi durante anos o maior gestor dos activos externos do BNA mas também o maior credor do banco central. Ainda hoje gere investimentos do BNA anteriores a 2017 sem informar (não está obrigado contratualmente) o banco central em que tipo de activos está investido o dinheiro. Além dos financiamentos, a Gemcorp começa a ganhar espaço a nível da construção e também da exploração mineira, já que viu o Estado atribuir-lhe uma mina de diamantes mas também um projecto estruturante para o país, a refinaria de Cabinda que praticamente já viu o seu preço duplicar para 900 milhões USD desde a sua atribuição, mais uma vez sem concurso. "Este projecto é um projecto privado não é público, o Estado angolano não vai pagar nada nos próximos anos à Gemcorp, e não constitui dívida pública. Antes pelo contrário, a Sonangol ganhou 10% nesta refinaria sem encargos.
Em relação a esta empresa não sei que privilegio está a obter do Estado angolano uma vez que [a Gemcorp] aparece como financiador", revelou João Lourenço. No entanto, já é público que a Gemcorp vai receber apoios inéditos no país para arrancar com este projecto da refinaria, entre os quais a redução da taxa de Imposto Industrial em 90% por um período de 15 anos ou a redução em 90%, durante 15 anos, do imposto sobre a Aplicação de Capitais ou a isenção do pagamento do Imposto Predial durante 12 anos, só para citar alguns.
O Estado está impedido de expropriar, confiscar ou praticar qualquer acto que, directa ou indirectamente, inviabilize ou afecte negativamente a execução do projecto. Vários empresários revelaram estar perplexos pelas facilidades concedidas a uma empresa cujo accionista maioritário tem um passado algo opaco no país.
De Carrinho a partir do Lobito
De seguida, o Presidente apontou baterias ao Grupo Carrinho, com origem no Lobito, criado em 2010, com um capital social de 200 mil Kz, que apesar de alguns negócios com o Estado angolano acabou por "cair no radar" em 2019 quando inaugurou de um complexo industrial de 17 fábricas de produtos alimentares avaliado em 600 milhões USD. Para isso, recebeu duas garantias soberanas do Estado. Entretanto alargou o seu raio da acção para o sistema financeiro nacional quando, no final de 2021, venceu o primeiro leilão em bolsa realizado no País e assegurou a compra de 100% do capital social do Banco Comércio e Indústria (BCI) por 29 milhões USD.
Poucos dias depois foi anunciada como vencedora do concurso público para gerir a Reserva Estratégica Alimentar (REA), um antigo projecto do Ministério do Comércio que visa estabilizar o fornecimento de produtos da cesta básica e eliminar eventuais períodos de escassez. Vai fazê-lo juntamente com a Gemcorp, isto apesar de o Expansão ter revelado, em 2019, que vários contratos no âmbito de uma linha de crédito da Gemcorp para a importações de bens alimentares por via de um circuito fechado entre ministérios e empresas nacionais terem chegado a Angola com preços altamente inflacionados.
Nas várias facturas a que o Expansão teve acesso, foi possível detectar que a Carrinho importava produtos fornecidos pela Manty AG, uma empresa com sede na Suíça e sucursal em Portugal. Segundo fontes ligadas à Gemcorp, esta empresa suíça pertence ao Grupo Carrinho que, assim, fazia negócios com ela própria, com os produtos a chegarem a Angola quatro e cinco vezes mais caros que nos mercados internacionais. Na prática, receia-se que o Estado colocou duas raposas a gerir o galinheiro que é Reserva Estratégica Alimentar.
Quanto ao Grupo Carrinho, João Lourenço "lava as mãos" lembrando que foi ele que inaugurou "a indústria de transformação de produtos alimentares que creio ser a maior do País neste momento". "Que eu saiba, o Estado não pôs nenhum tostão neste projecto do grupo Leonor Carrinho. Eles recorreram com meios próprios dos negócios que foram tendo ao longo dos anos e recorreram a banca comercial. E se a banca comercial financiou significa que têm credibilidade", disse.
O chefe de Estado deu como exemplo o facto de este grupo ter conseguido quase 200 milhões de euros em financiamento de uma linha de crédito alemã que vale 1.000 milhões de euros, que impôs como condições a apresentação de garantias soberanas. "Passado este tempo uma única empresa privada angolana conseguiu provar que está habilitada a beneficiar desta linha de crédito. Quem beneficiar desta linha o crédito fica coberto de uma garantia soberana que o Estado dá e a única empresa que provou beneficiar de crédito no valor um pouco abaixo de 200 milhões de euros chama-se Leonor e Carrinho. Foi o executivo angolano que gosta tanto da Leonor e Carrinho e impediu que os outros entrassem? Não. Tanto é assim que pelo menos ainda estão disponíveis 800 milhões euros. A gente luta para conseguir financiamentos e ainda não consumimos quase nada. Onde andam os nossos empresários? O que é que se passa? É uma vergonha", rematou.
Mitrelli - O parceiro social
Quanto ao Grupo Mitrelli, de origem israelita, que se assemelha a um polvo de longos tentáculos, que atingem diversos sectores de actividade, João Lourenço revelou ser um grande financiador do Estado. O grupo ligado ao empresário Haim Taib está quase sempre associado a negócios de milhões com contornos muitas vezes pouco transparentes negócios esses que vão desde a agricultura, à construção, à saúde, entre outros. "O grupo Mitrelli nos anos 2012 -2013 financiou o Estado angolano em 7 mil milhões de dólares e com este recurso foram construídas nove centralidades no País, que na sua maioria já estão habitadas e oferecem cerca de 27.500 fogos habitacionais", disse.
Lourenço acrescentou: "Desta facilidade de credito no valor de 7 mil milhões de dólares, mais recentemente, ou seja entre 2020-2021, este grupo está a financiar 1,7 mil milhões de dólares e estão a cobrir as despesas de construção da [sede] CNE [Comissão Nacional Eleitoral], centro nacional de escrutínio, vão cobrir despesas de construção e apetrechamento dos novos hospitais do Bengo, Sumbe, Ndalatando, do novo hospital militar central, do novo hospital universitário, de 3 mil fogos habitacionais na província de Cabinda, de mil fogos habitacionais no Bengo, de mil no Cunene, da construção de dois estádios de futebol para a província do Huambo e Uíge e da conclusão das obras do centro de ciência e tecnologia aqui na cidade de Luanda e da linha de transporte de energia Sumbe-Gabela".
O problema deste tipo de linhas de crédito é que as condições são quase sempre pouco transparentes, nunca são divulgados publicamente, por exemplo as taxas de juro que o Estado paga por elas. Acabam por ser empréstimos sempre muito mais caros que os financiamentos bilaterais (país a país) ou multilaterais (FMI, Banco Mundial, etc).
Omatapalo - Obras públicas para todos os gostos
Em resposta à questão do Expansão, o presidente também falou sobre a Omatapalo, uma empresa angolana que actua no sector da construção civil, com sede no Lubango e representações em Portugal e Moçambique, que garantiu empreitadas superiores a 800 milhões USD entre 2018 e 2019. Mais de 400 milhões USD representam adjudicações sem a realização de concursos públicos e referem-se à reabilitação de hospitais e construção de infra-estruturas.
São recorrentemente contratadas pelo Estado para a construção de obras públicas e agora percebe-se porquê. "A Omatapalo de alguma forma também tem financiado o Estado, dando início a obras de construção ou reconstrução como a do hospital sanatório sem receber um tostão [inicial] do Estado. Tem confiança de que o Estado é uma pessoa de bem, mais cedo ou mais tarde vai pagar. Aceitou o desafio", revelou.
Numa economia que se quer mais de mercado, o facto desta empresa de construção arrancar obras sem o Estado desembolsar as primeiras tranches parece estar a permitir-lhe deixar a concorrência a léguas de distância.
"Todos os países querem ter neste momento no domínio de obras públicas empresas da dimensão da Omatapalo. O nosso [desejo] não é ter uma Omatapalo, mas cinco e esta empresa também foi crescendo e o que a gente saiba pelo menos a PGR não nos diz nada, a fonte de financiamento da empresa para além das obras que faz não são ilícitas e portanto o Estado não pode prescindir de uma empresa como esta", finalizou.