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"O mundo toca jazz mas por ironia do destino, África está atrasada"

GEGÊ BELO

É considerado como o "pai do jazz" em Angola pela sua militância e faceta de histórico divulgador desta forma de arte. Em mais uma celebração do estilo musical (e de vida), vai organizar dois concertos no domingo, 30 de Abril, no dia internacional em homenagem ao jazz.

Como o apresentamos?

Como jazz lover ou militante cultural. A palavra jornalista aqui, e posso dizer isso, é aquele que escreve para jornais e que insulta o poder, a FNLA ou a Unita. Jornalista de música, que é o que faço há 50 anos, não existe. Ninguém valoriza. Eu disse à Luísa Rogério: estão a dar carteiras profissionais aos jornalistas, mas se eu for a um festival lá fora não levo nenhum documento!? É óbvio que já fui a festivais, mas ia com uma credencial da TPA, como jornalista.

Já lá vão 50 anos desde que "descobriu" o jazz. O que o despertou?

As duas questões fundamentais que levaram a envolver-me com o jazz ou a procurar saber mais da sua história, que mais tarde vem a se chamar jazz, é que na base estão 13 milhões de africanos que foram levados para as Américas como escravos. Muitos destes africanos são provenientes do que hoje se chama Angola.

Foi a curiosidade?

Sim, queria perceber como é que os escravos produzem uma música assim, tão bonita, tão complexa, ao mesmo tempo, tão difícil de ouvir dada a sua beleza. Mas também fui ajudado pelas pessoas que iam a casa dos meus pais, eram vários poetas, falo do João Abel, António Cardoso, Arnaldo dos Santos, os Mingas, de quem erámos vizinhos.

O ambiente em que vivia favoreceu?

Todo este ambiente da minha infância levou a interrogar-me. Depois desta altura, já no Liceu, líamos, às escondidas, poemas que eram proibidos, de Agostinho Neto, Viriato da Cruz, António Cardoso e António Jacinto. E eles começaram a falar no jazz.

Mas o interesse começou pela sonoridade ou pela mensagem do som?

Começou pela problemática, por um lado, mas ainda de forma muito incipiente, e depois pelo som. O som encontrei no tal amigo de infância, o José Andrade, o pintor "Zan", já falecido. Lembro que ouvíamos blues, mas o disco que me marcou mais terá sido um daqueles pequeninos, de 45 rotações, depois é que veio o vinil. Eu dizia: que raio de música é esta que os africanos geraram nas Américas!? Daí a minha paixão, que dura até hoje, por esta música.

E nunca mais parou.

Continuo a trabalhar com o jazz à minha maneira. Acho que é um compromisso que tenho comigo próprio e com os 13 milhões de africanos que foram para as Américas. Continuo a divulgar a chamada grande música negra. Digamos que é um tópico, um slogan que foi para a luta política, pelos direitos cívicos, mas que resumiria apenas em jazz, que é uma palavra que não tem significado rigoroso. É apenas o som que tem uma forma incrível.

O jazz veio dos escravizados, mas depois tornou-se mais escutado pelas elites.

Sinceramente, é um conceito que é preciso ir modificando. Realmente, o jazz é uma música de audição difícil, mas ao mesmo tempo caminha para um estatuto de cada vez maior dignidade, porque está associada a sentimentos nobres, paz, liberdade, ao individualismo e, ao mesmo tempo, à sensibilidade colectiva.

O contexto pode ter influenciado essa mudança?

Hoje, o jazz já não é a música de uma minoria negra, oprimida, escravizada, que em condições difíceis se encontra com europeus pobres, que foram presos nas suas cidades para irem a New Orleans para construir a cidade ao lado dos escravos africanos. Escravos que substituíram os índios, que eram considerados muito frágeis.

O que temos hoje?

Uma música de músicos, uma música de artistas ligada ao virtuosismo e a uma nova sensibilidade. Hoje há músicos de jazz de todas as proveniências, matizes epidérmicas e idades.

As novas gerações lidam facilmente com a história?

Não há guerras de gerações, nem nos palcos, nem nos estúdios. Hoje o jazz é a música da liberdade, da fraternidade e a plataforma de entendimento entre homens das mais variadas latitudes e geografias rítmicas. Há influência do jazz da China, do Japão, que neste momento ultrapassou os EUA, em termos de publicações, os melhores estúdios existem lá, os japoneses são geniais. O mundo está a tocar jazz mas, por ironia do destino, quem se está a atrasar é África.

(Leia o artigo integral na edição 722 do Expansão, desta sexta-feira, dia 28 de Abril de 2023, em papel ou versão digital com pagamento em kwanzas. Saiba mais aqui)