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Grande Entrevista

"Estamos numa sociedade em que o conceito de justiça não é muito conhecido"

EMANUELA VUNGE | ADVOGADA

Uma conversa sobre política, justiça social e sistema judicial, e a forma como estes temas centrais em qualquer sociedade se interligam com a economia, o processo de diversificação e a necessidade de imaginar um futuro diferente para os jovens e as novas gerações de angolanos.

Estamos praticamente no fim de 2025, ano que ficou marcado pelos 50 anos de independência e por diversos momentos de celebração. Mais do que olhar para o passado, gostaria que olhasse para o futuro. Como imagina a Angola dos seus filhos e das próximas gerações?

Ainda bem que falou nos filhos, porque eu acho que Angola, neste momento, depende mesmo muito das próximas gerações. Parece- -nos que, no fundo, nós e os que nos antecederam, esgotaram um bocadinho as soluções mais concretas e de curto e médio prazo. Olho para Angola como um País que tem um imenso potencial, com um imenso volume de juventude muito crítica, com muita energia.

Quais são os pontos-chave que devem ser resolvidos para que as próximas gerações tenham uma vida e um País melhor?

Normalmente, são mesmo as questões básicas que fazem as sociedades desenvolverem-se e procurarem soluções para si próprias. Portanto, a educação é o primeiro passo. Por acaso, ouvi recentemente uma opinião da Igreja Católica sobre a educação e sobre a maneira como se deve olhar para as comunidades e, se calhar, devemos recuar um bocadinho. Mais do que pensarmos em novas soluções, podemos ir buscar algumas soluções do passado que funcionaram muito bem.

Em que sentido?

Lembro-me que um dos exemplos que a Igreja Católica deu era exactamente abrir mão dos requisitos de licenciatura para quem trabalha com comunidades remotas, como estratégia para assegurar o fim do analfabetismo, uma transmissão mínima de conhecimentos e para que as meninas tenham acesso à educação. Os factores que ainda são uma grande barreira ao desenvolvimento das comunidades têm de ser repensados, por mais que achemos que temos de olhar para o futuro. É verdade que nos meios mais urbanos já podemos pensar em outras soluções, baseadas em inteligência artificial e noutros sistemas modernos. Mas ainda temos realidades muito duras que, no fundo, não acompanham o que nós vemos hoje no mundo contemporâneo.

E quando se fala em educação, fala-se na saúde, por exemplo.

Olhamos para aquilo que são os hospitais e pensamos na necessidade que há de medicina de proximidade, de medicina preventiva, de educação para a sexualidade. Não tenho ainda 50 anos, mas ainda me lembro muito bem do que era, por exemplo, a educação para o planeamento familiar, para as mulheres e para as meninas, e que hoje não acontece. E vemos, por exemplo, o impacto negativo, por causa da gravidez precoce ou do número de filhos por mulher, e o impacto que isso gera nas comunidades e no seu desenvolvimento. Naquilo que são os factores essenciais e a base da sociedade, temos de olhar com uma perspectiva de futuro, sim, mas pensar também em ensaiar soluções que já funcionaram muito bem e que deram resultados bons para o País.

Pela sua descrição, considera que existe um desfasamento entre o meio urbano e o meio rural. É necessário aproximar estas duas realidades e também investir mais, levar mais serviços ao meio rural?

Sim, eu penso que sim. Tenho andado um bocado pelo interior do País, não muito, mas do pouco que vejo, acho que a extensão e a nossa geografia permitiriam até uma imensa qualidade de vida às pessoas - acima até, às vezes, daquilo que encontramos nos centros urbanos. Mas o que acontece é que estas zonas, por um lado, não têm os meios económicos e financeiros, portanto, não há massa circulante. Ninguém quer sair das grandes cidades para viver em meios mais isolados, porque depois não tem como se sustentar e gerar qualidade de vida a si, aos seus filhos e tudo mais. Mas vê-se claramente esse desfasamento, não há dúvida.

Os próprios indicadores oficiais indicam que o fosso entre as cidades e o meio rural está a aumentar.

A mim, custa-me muito ver crianças a caminhar à beira da estrada para ir à escola. Andam longas distâncias. Logo à partida, chama-me à atenção, pela natureza do esforço que é ir à escola - e vejo logo que vão mais rapazes do que meninas. As mães também querem proteger mais as meninas de certas situações, portanto, isso tem de ser resolvido. A dificuldade de chegar à escola nesse tipo de meios é algo que já não acontece, por exemplo, em Luanda, onde se calhar uma menina de 13, 14 anos está confortável a apanhar um candongueiro para ir à escola.

A relação entre a cidade e o campo é um tema muito estudado na teoria do desenvolvimento.

Eu também não sou daquelas que defende que se deve urbanizar tudo e acabar com as zonas rurais. As zonas rurais devem continuar, mas devem continuar com um bom nível de dignidade. E mesmo quando as pessoas decidem sair dessas zonas e ir para as cidades, porque também é um fenómeno da liberdade das pessoas, que tenham perspectivas de enquadramento com o mínimo de dignidade. Porque nós vemos, por exemplo, o fenómeno dos kupapatas e mesmo das zungueiras, que estão nas cidades, mas sem dignidade de vida. Muitas vezes nós nos referimos às zungueiras como um orgulho nacional. E eu acho que não são um orgulho, porque são mulheres que vivem um problema de exclusão social e de luta pela sobrevivência. Nós devíamos ter como compromisso social não deixar que estas mulheres fiquem expostas a esse nível de riscos.

Esta análise também está associada à necessidade de diversificar a economia e melhorar bastante as políticas públicas adoptadas nas últimas décadas?

Eu concordo, mas diria também que, às vezes, a maneira como se transmite a ideia da diversificação da economia, como sendo a verdadeira solução para os problemas de Angola, sugere que devemos ser mais equilibrados na abordagem. Principalmente quando Angola tem uma base muito grande de desigualdades sociais. E eu olho, por exemplo, para o Brasil, que é um país de matriz de desigualdades, mas que que já diversificou há muito tempo a economia e tem um nível agropecuário muito alto. Chegou a ser a oitava economia mundial [actualmente é a 9ª maior do mundo]. Mas, salvo aquele pacote especial, vamos dizer, de verdadeira luta pela igualdade do primeiro mandato do presidente Lula, nada disso gerou um verdadeiro impacto naquilo que são as desigualdades sociais. A diversificação tem que vir acompanhada de imensas outras políticas, porque esses regionalismos e assimetrias regionais não acabam automaticamente.

Se a economia é insuficiente para equilibrar o País, o que faz realmente a diferença?

Precisamos de uma abordagem muito prática do território, do número de população, da taxa de crescimento populacional, e percebermos exactamente o que é possível fazer com aquilo que temos. Os países também não têm fórmulas mágicas e não devem gastar acima daquilo que arrecadam. Eu olho muito para o Brasil, exactamente por causa das semelhanças com a nossa realidade. E também porque o Brasil vendeu, entre aspas, ou vende até agora para a sua população, algumas políticas de esquerda, que depois são muito difíceis de implementarpor causa de outros factores. Por exemplo, o Brasil desenvolveu um grande sistema de saúde, o famoso SUS (Sistema Único de Saúde), que atende cerca de 200 milhões de habitantes. Têm capacidade para efectuar transplantes, tratar doenças crónicas, mas depois podem ter uma mulher a morrer num centro de saúde por excesso de pacientes. Portanto, se por um lado têm resultados muito aproximados de países desenvolvidos, depois têm também situações caricatas e quase inaceitáveis, comparáveis a países de economias e sociedades muito menos desenvolvidas. É esse equilíbrio que é preciso encontrar.

A desigualdade social é consequência directa de políticas públicas elitistas, protectoras dos mais ricos e sem sensibilidade social?

O Brasil foi construído na desigualdade, porque mesmo o acesso ao ensino era muito condicionado a quem não tivesse uma certa base. Nós sabemos que o acesso às universidades federais, por exemplo, implica passar no que eles chamam de vestibular, que tem um determinado nível. Uma parte das crianças, sobretudo aquelas com menos condições, não chegariam lá. Mas esse não era o caso de Angola até há muito pouco tempo. Pelo contrário, eu acho que Angola tem exemplos muito concretos de mobilidade social e, durante muito tempo, com uma base de igualdade. Eu não acho que tenham sido criadas políticas que tenham gerado um resultado imediato de desigualdade.

Leia o artigo integral na edição 855 do Expansão, sexta-feira, dia 05 de Dezembro de 2025, em papel ou versão digital com pagamento em kwanzas. Saiba mais aqui)

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