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Grande Entrevista

"Os paraísos fiscais não são apenas pequenas ilhas, são as maiores economias do mundo"

LÉONCE NDIKUMANA E NICHOLAS SHAXSON, INVESTIGADORES

Autores do livro "No rasto da fuga de capitais de África", que investigou a saída de dinheiro de três países do continente, entre eles Angola, falam sobre o sistema de impunidade dos paraísos fiscais, que inclui corporações internacionais mas também escritórios de advogados e consultoras, e que corrói as economias e as democracias destes países.

O Léonce e o Nickolas são co-autores de um livro que investiga a dinâmica da fuga de capitais de Angola, Costa do Marfim, e África do Sul, nas últimas décadas. Como é que se interessaram por este assunto?

Léonce: Ambos temos estado interessados nestas questões de fuga de capitais, fluxos financeiros, evasão fiscal, lavagem de dinheiro há já algum tempo. Eu, como economista de desenvolvimento, vejo isto como uma questão de desenvolvimento financeiro, porque é a fuga de capitais e os fluxos financeiros que, em geral, roubaram os poucos recursos que podem ser utilizados para financiar infraestruturas, serviços públicos e assim por diante. E é tão importante, especialmente para África, um continente que realmente carece de recursos, de financiamento para impulsionar o seu crescimento, ao mesmo tempo que está atrasado em indicadores de desenvolvimento como pobreza, educação.

Esta fuga choca-o?

Léonce: É escandaloso, o nosso continente, que precisa de fazer tanto para melhorar o bem-estar das suas populações, ver os seus recursos serem desperdiçados e enviados para offshores pelas elites, em conluio com actores estrangeiros como grandes corporações. As razões para me interessar por esta questão da fuga de capitais deve-se ao facto de ser um sério constrangimento ao desenvolvimento.

Nicholas: A minha resposta é um pouco mais pessoal. Eu fui o correspondente da Reuters e do Financial Times em Angola de 1993 a 1995 e, nessa altura, toda a gente se perguntava como é que um país tão rico era tão pobre? E a outra questão que se colocava também é "para onde é que foi todo o dinheiro""? Nessa altura, ninguém tinha uma resposta certa para estas questões. Mas sabia-se que a resposta era a corrupção, o roubo, essas respostas não estavam erradas, mas há mais na história, penso eu.

Como por exemplo?

Nicholas: Nessa altura, havia alguns académicos que estavam a criar uma tese sobre a "maldição dos recursos" em países com muitos recursos, como petróleo... Há duas versões sobre essa "maldição dos recursos": a primeira é que não usam esses recursos para o desenvolvimento e a maioria da população não fica mais rica. Obviamente que algumas pessoas ficam muito ricas, mas a versão mais forte destas versões é que estes países estão pior do que se não tivessem esses recursos. Mas para os estrangeiros que visitem, por exemplo, Luanda, e que vão ficar na capital, nestes edifícios bonitos, no centro da cidade, na marginal, tudo vai parecer muito agradável e será difícil imaginar que no interior do país, onde a maioria das pessoas vive, as coisas são muito más. O petróleo prejudica os outros sectores da economia, através de vários mecanismos.

A doença holandesa...

Nicholas: Sim. Enfim, eu estava a trabalhar nisto e então, 10 anos depois de ter deixado Luanda conheci alguém, chamado John Christensen, que tinha sido conselheiro económico do paraíso fiscal britânico de Jersey. Era um tipo de esquerda, e estava revoltado com o que viu. Ele tinha trabalhado no governo de Jersey, como o seu principal conselheiro económico, mas também na prática privada, e decidiu ficar porque queria investigar, basicamente, e estava realmente enojado com o que viu. Falei com ele e vi o outro lado da equação. Portanto, é para aqui que vai o dinheiro... não só para Jersey mas para muitos outros paraísos fiscais.

Como é que isso o influenciou?

Nicholas: Ele começou a falar-me do sistema, deste sistema global, que até então eu tinha considerado como uma espécie de espectáculo exótico para a economia global, onde estes tipos maus, como a máfia, ou onde as celebridades colocam dinheiro nas Ilhas Caimão, ou Bahamas, ou Jersey. Ele mostrou-me que o sistema era muito maior do que eu tinha pensado e, nesta altura, em que íamos falando surgiu um relatório que revelava que há dinheiro de ajuda internacional a entrar em África, mas a quantidade de dinheiro que sai debaixo da mesa para paraísos fiscais era 10 vezes maior. Era uma história que ninguém estava realmente a ver. Todo este tipo de liberalização promovida pelo FMI e pelo Banco Mundial, dizendo que é necessário abrir as nossas economias porque a África tem falta de capital, de facto, a verdadeira história é que apenas facilitou o fluxo de dinheiro para fora do continente.

E os offshores têm aqui um papel importante?

Nicholas: Os paraísos fiscais não são apenas estas pequenas ilhas, como as Caimão ou países como a Suíça, são as maiores economias do mundo. O meu próprio país, a Grã-Bretanha, era e continua a ser indiscutivelmente o maior centro de actividade offshore do mundo. Os Estados Unidos são um gigantesco paraíso fiscal. Até conhecer John Christensen eu tinha assumido que na minha carreira iria estudar países produtores de petróleo em África. Literalmente, da noite para o dia, percebi que esta é uma história completamente nova e fiquei arrebatado. Três ou quatro dias depois de o conhecer fiz uma mudança radical na minha carreira. Obviamente, que ainda estava muito interessado em África e em Angola, mas tinha tropeçado neste mundo dos paraísos fiscais e afastei-me do petróleo durante alguns anos, até ao Leonce e o James Boyce me contactarem.

Portanto, voltando aos resultados do livro, esta questão dos paraísos fiscais é das principais causas para a situação de pobreza dos países africanos?

Nicholas: Obviamente que há várias razões para os problemas em África, mas eu vejo-o como uma boa parte do problema, porque está ligada a questões políticas. Acho que as pessoas não vêem este assunto como uma questão política, mas, se houver uma elite em qualquer país, nos países ricos e pobres, em todos os países, que possa usar o sistema de paraísos fiscais, este é basicamente um sistema usado para escapar a regras de que não gostam. É um sistema de impunidade em que um grupo de pessoas pode pagar para levar o seu dinheiro para o estrangeiro. Isto não é para as pessoas da rua, isto é realmente para as grandes corporações multinacionais, pessoas ricas.

Que por si só já são beneficiados em muitas outras coisas...

Nicholas: Criou-se um tipo de sistema político, em que há certas regras para as pessoas comuns e outras regras para a elite. É a destruição absoluta das democracias, porque, como se diz em inglês, "o peixe apodrece pela cabeça". Na Grã-Bretanha, não são só as elites britânicas que vão para os offshores fazer coisas que não podem fazer em "casa", são também os oligarcas russos e outras pessoas que trazem o seu dinheiro e a si próprios e aos seus negócios para Londres, para coisas que não estão autorizados a fazer em "casa". Nem sempre é uma questão de legalidade, por vezes estas coisas não são ilegais. É um sistema incrivelmente complicado com muitos buracos e caminhos. Uma vez que as suas elites se concentram neste tipo de sistema, o seu sistema político começa a desfazer-se. Portanto, penso que é uma das razões muito importantes para os terríveis problemas que hoje vemos no mundo, tanto nos países ricos como nos pobres.

(Leia o artigo integral na edição 667 do Expansão, de sexta-feira, dia 25 de Março de 2022, em papel ou versão digital com pagamento em kwanzas. Saiba mais aqui)