Lei do Registo Civil em vigor é de 1967 e ainda fala em "portugueses"
A identificação é fundamental para apoiar a inclusão e participação dos cidadãos na vida do País. O registo de nascimento é obrigatório para obter um BI, que por sua vez é um pré-requisito para os serviços públicos, incluindo educação, registo de imóveis e veículos ou para aceder a um empréstimo.
Inconsistências legais e institucionais, enorme dispersão territorial, que dificulta a instalação de serviços básicos nas zonas rurais, e uma administração pública excessivamente centralizada e focada nas principais localidades. Estes são apenas alguns dos constrangimentos que, associados aos efeitos das sucessivas guerras, que destruíram bases de dados e registos de identidade, afectam o acesso ao Registo Civil (RC) e à identificação no País, segundo o "Diagnóstico de sistemas de identificação em Angola", publicado pelo Banco Mundial em Agosto. Um dos exemplos mais evidentes da fragilidade que afecta a prestação destes serviços básicos verifica-se na legislação em vigor relativa ao RC, que ainda é do período colonial (foi aprovada em 1967) e continua a fazer referência apenas a cidadãos portugueses.
O decreto lei n.º 47 678, de 5 de Maio de 1967, referente ao Código do Registo Civil, entrou em vigor, em Angola, no dia 1 de Janeiro de 1968 e até hoje não foi revogado para se conformar aos 50 anos de independência e à ideia de cidadania angolana, apesar das alterações pontuais que foram efectuadas, como é o caso da última mudança substantiva, em 1986, que desagregou um capítulo relativo ao regulamento da lei do casamento - ou da actualização (efectuada em 1996) dos valores dos emolumentos cobrados para os diferentes actos associados ao RC.
Mas o alerta não é apenas de conformação legal, já que o texto que suporta o Código do Registo Civil continua, 50 anos depois da independência, a fazer referência apenas a territórios portugueses, cidadãos portugueses e cidadãos nascidos "nas províncias ultramarinas", como é o caso do ponto 1 do Artigo 2.º, que aborda os "Factos obrigatoriamente sujeitos a registo".
"Os factos referidos no artigo anterior, e bem assim os que determinem a modificação ou extinção de qualquer deles, constarão obrigatoriamente do registo civil, desde que respeitem a cidadãos portugueses ou, quando referentes a estrangeiros, hajam ocorrido em território português", lê-se no decreto de 1967.
A situação chega a ser caricata, mas demonstrativa dos percalços administrativos que grassam um pouco por todo o território, com efeitos nefastos na vida dos cidadãos, e das dificuldades em alinhar os dispositivos legais e regulamentares em vigor à realidade actual dos angolanos.
Por outro lado, o Código do Registo Civil de 1967, elaborado pelas autoridades coloniais, está completamente desfasado da realidade moderna, onde os papéis, os livros de registo e os serviços aos cidadãos são cada vez mais informatizados e digitalizados. Esta evolução não é meramente retórica, já que a tecnologia e os novos mecanismos baseados em computadores de elevada capacidade permitem gerir de forma mais célere, eficaz e em tempo real as bases de dados e as informações essenciais sobre os cidadãos.
"As origens e o enquadramento legal do sistema de registo civil datam dos tempos coloniais. Embora tenham sido recentemente actualizadas e aprovadas leis [conexas], grande parte da legislação original continua em vigor e a ser efectivamente utilizada. Isso originou um quadro jurídico desarticulado e inconsistente, resultando em diferentes interpretações e aplicação desigual das leis em todo o País", assinalam os autores do estudo.
Conforme definido pelas Nações Unidas, o RC é o registo contínuo, permanente, compulsório e universal de todas as ocorrências, e suas características, de eventos vitais relativos à população. Em termos práticos, o registo diz respeito a todos os eventos vitais (nascimentos, casamentos e mortes) que ocorrem num território ou dentro da sua jurisdição, e potencialmente para os seus cidadãos que vivam no estrangeiro. Já os sistemas nacionais de identificação são geralmente exclusivos aos cidadãos de um país.
O diagnóstico elaborado pela equipa de especialistas do Banco Mundial cita dados das Nações Unidas e do Instituto Nacional de Estatística (INE) para assinalar que, em 2022, 77% dos cidadãos tinham o registo de nascimento completo, mas apenas 46% dos angolanos possuíam um Bilhete de Identidade (BI).
Estes números são mais preocupantes entre as crianças: 58% dos angolanos com idades compreendidas entre 1 e os 4 anos e 78% das crianças com menos de 1 ano não tiveram o seu nascimento registado, realidade que pode ser um vector de exclusão social e pobreza, limitando o acesso a direitos consagrados na Constituição, como é o caso da saúde, educação e emprego.
"As baixas taxas de identificação afectam principalmente os jovens, os pobres e os indivíduos que residem nas áreas rurais. Estas disparidades tendem a ser transferidas para as gerações seguintes, dadas as dificuldades de registar uma criança quando os progenitores não estão registados ou não possuem BI. A capacidade institucional do governo para prestar serviços de registo de nascimento e identificação continua a ser significativamente inferior à necessária", assinala o diagnóstico efectuado pelo Banco Mundial.
Leia o artigo integral na edição 844 do Expansão, de Sexta-feira, dia 19 de Setembro de 2025, em papel ou versão digital com pagamento em kwanzas. Saiba mais aqui)