Angola: Finanças públicas (2002–2024) Elegia fiscal de uma Nação em suspenso
Um orçamento é sempre um acto político e um juízo moral - ou não é nada. Angola, espelhando-se na sua história fiscal recente, tem diante de si uma encruzilhada civilizacional. Ou continua a repetir os erros de um modelo exausto, ou ousa reinventar-se, descolonizando-se do petróleo, refundando a sua arquitectura fiscal, e reconstruindo o contrato social com o seu povo.
Nas veredas incertas da história económica angolana, desenha- -se um fresco dramático, em que o esplendor e a escassez dançam, alternadamente, como atores de uma tragédia grega que se repete com outros nomes, mas com o mesmo desfecho. Entre o fausto dos anos dourados e o jejum imposto pela realidade, entre o cântico das cifras pujantes e o silêncio sepulcral da contração, ergue-se - ora altiva, ora vacilante - a arquitetura orçamental de Angola.
Foi no apogeu de 2006 e 2008 que o Tesouro Nacional se viu banhado por um dilúvio de receitas, subindo aos pináculos dos 46,4% e 50,9% do Produto Interno Bruto, respetivamente. Nesses anos de jubilo fiscal, o petróleo - esse bálsamo e veneno - jorrava como maná moderno, enchendo cofres e insuflando esperanças. Angola, tal como um novo Midas(1), tocava em ouro líquido que escorria das entranhas da terra para os corredores do poder, alimentando a utopia de uma prosperidade perpétua.
Contudo, o que se revelou milagre depressa se converteu em miragem. Pois a dependência do petróleo, qual narcótico tributário, embriagou as decisões de Estado e adormeceu as consciências reformistas.
A partir de 2014, a curva da arrecadação declinou, como sol que mergulha no horizonte da contenção. Em 2023, restava apenas um ténue 17,4% do PIB em receitas totais - cifra que mais murmura que proclama, que mais lastima que galvaniza. Para 2024, antevê-se modesto alívio: 18,1%, ainda muito aquém da robustez necessária a um Estado com ambições de grandeza.
O erário petrolífero, matriz fundacional da economia angolana, seguiu igual destino: dos altivos 41,2% do PIB em 2008 para os escassos 10,7% previstos em 2024. A nação, refém de um mercado volátil, viu-se à mercê das marés geoeconómicas que não comanda, das cotações que não dita, dos ciclos que não modula. Esta verdade nua e crua depõe contra a soberania fiscal de Angola e exige, com carácter de ur-gência patriótica, um novo desígnio de diversificação.
E a despesa pública? Ah, essa partitura rítmica da acção governativa, esse espelho da vontade política! Em 2008, galgou os céus, tocando os 56,6% do PIB - talvez por fé desmedida na redenção via infra-estrutura, talvez por estratégia anticíclica. Mas o tempo, esse escultor implacável da realidade, obrigou à contracção.
Em 2024, o Estado projecta gastar apenas 16,7% do PIB - número que, por si só, não revela se tal contenção é virtude de prudência ou sintoma de penúria. A despesa corrente, nervura da máquina estatal, murchou de 35% em 2002 para 13,9% em 2024 - como se o próprio Estado se retraísse, apagando-se à medida que o povo clama por mais presença. Mas é na despesa de investimento que se rasga o grito: de 23,3% em 2008 para um magérrimo 2,9% em 2024.
Como semear futuro sem lavrar presente? Como edificar soberania sem cimento, aço e inteligência infraestrutural? O saldo fiscal, esse sismógrafo da saúde orçamental, registou tremores intensos: em 2006, um clímax de 14,8% positivo; em 2009 e 2015, profundos abismos de -8,6% e -6,8%, respectivamente. Para 2024, acena-se um tímido superavit de 1,3% - vitória simbólica, mas fundada em receitas depaupera- -das e investimentos atrofiados.
A estabilidade, sem substância, corre o risco de ser apenas pausa antes da próxima convulsão. E no front da dívida externa, o drama adquire magnitude épica. Em 2020, Angola vergou sob o peso de 90,4% do PIB em endividamento externo - resultado de um clamor de sobrevivência perante a pandemia e o colapso das commodities.
Em 2022, tal cifra recuou para 36,6%, numa oscilação que poderá reflectir esforço de reestruturação, pagamentos corajosos ou, quiçá, capitulação do investimento. Mas a lição permanece: enquanto a dívida for bálsamo, Angola será corpo frágil em leito alheio. Dessa anatomia exposta sob holofotes estatísticos, emerge um veredicto implacável: Angola vive há demasiado tempo sob o jugo de um modelo extrativista e monocórdico. É um corpo económico com pele dourada e ossatura frágil, onde o músculo fiscal autóctone é ausente.
É tempo de romper com o feitiço petrolífero e avançar, com passo firme, para um novo paradigma: diversificado, resiliente, inclusivo. Mas há perigos na ortodoxia orçamental quando esta se converte em idolatria tecnocrática.
A consolidação excessiva é lâmina que, ao mesmo tempo que corta desperdícios, pode também seccionar veios de esperança. Reduzir despesa pública em nome da estabilidade, sem atender ao impacto social, é acto de cegueira política e de miopia moral.
A contenção deve ser sábia, não selvagem; justa, não punitiva. Um orçamento não é mera ferramenta contábil. É confissão de identidade, é cartografia de prioridades, é testamento de futuro. É ali, nas rubricas e nas percentagens, que se lê o que um Estado valoriza, a quem serve e que mundo deseja legar.
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