Angola: Operações financeiras do Estado (2017-2024) Uma travessia entre abismos e fulgurações
A interpretação última desta ópera de cifras é clara: Angola, atolada entre a magnificência dos seus recursos e a gravidade das suas amarras financeiras, trava uma luta diuturna pela emancipação económica. A dependência petrolífera, qual espada de Dâmocles(3), paira incessantemente. Torna-se imperativo, tão urgente quanto vital, diversificar a economia e robustecer as instituições.
No orbe recôndito das finanças públicas, as operações financeiras do Estado elevam-se como arcano pulsar, ora vibrátil, ora lânguido, da res publica angolana. Entre 2017 e 2024, desenrola-se, não um mero desfiar de algarismos, mas uma verdadeira epopeia de resiliência e vulnerabilidade, talhada em cifra e suor. Em 2017, Angola encontrava-se vergada sob o peso de um saldo global deficitário de -5,8% do PIB - índice clamoroso de uma era anquilosada pela hecatombe petrolífera. As receitas totais, acanhadas em 3.542 mil milhões de kwanzas, mal logravam mitigar despesas vultosas de 4.880 mil milhões. O serviço da dívida, então com 687 mil milhões de kwanzas, começava já a esculpir a sua sombra ominosa. E contudo, qual fénix(1) obstinada, em 2018 assiste-se à primeira alvorada: um saldo positivo de +2,0% do PIB, assente num crescimento fecundo das receitas, que saltam para 5.860 mil milhões, e numa contenção estratégica das despesas, estagnadas em 5.274 mil milhões. Aqui, a inversão é fulcral: pela primeira vez em lustros, o Estado vislumbra superavit no horizonte.
O ano de 2019, ainda sob os auspícios da austeridade virtuosa, preserva o equilíbrio, embora ténue (+0,5%). As receitas, alçando- -se a 6.547 mil milhões, começam a ganhar musculatura, impulsionadas pela robustez das receitas petrolíferas (3.953 mil milhões). Não obstante, as despesas, discretamente, ensaiam já um crescendo, atingindo 6.364 mil milhões. Todavia, 2020, annus horribilis, irrompe como tempestade devastadora. A pandemia da Covid-19 açoita as frágeis balizas económicas e o saldo global precipita-se para -1,7%.
As receitas, embora ampliadas para 7.054 mil milhões, vêem-se eclipsadas por despesas de 7.700 mil milhões. O serviço da dívida, elevando-se para 2.308 mil milhões, emerge como dragão insaciável. Esta inversão inaugura um novo ciclo de desafio orçamental, no qual a despesa corrente e o endividamento externo (7.220 mil milhões) cingem a soberania fiscal. Em 2021, uma reversão gloriosa anuncia-se: o saldo global renasce para +3,4%.
A reanimação dos preços petrolíferos catapulta as receitas para 10.995 mil milhões de kwanzas, enquanto a prudência impede a derrocada das despesas (9.207 mil milhões). As receitas petrolíferas, com 6.616 mil milhões, entronizam-se como verdadeiro Parnaso(2) financeiro. O serviço da dívida, todavia, não desarma: 2.445 mil milhões continuam a hipotecar margens de manobra.
Já em 2022, persiste o delicado funâmbulo orçamental: saldo de +0,8%, receitas de 13.336 mil milhões, despesas de 12.800 mil milhões. O equilíbrio, frágil como porcelana, exige alquimia entre austeridade e audácia. Mas eis que 2023 se anuncia sob o signo da reversão: o saldo mergulha para -1,9%. As receitas estagnam em 13.053 mil milhões - penalizadas por um recuo nas receitas petrolíferas para 7.196 mil milhões - enquanto as despesas inflectem vigorosamente para 12.902 mil milhões. O serviço da dívida, agora em 2.277 mil milhões, ameaça obliterar esforços de consolidação.
O financiamento externo, que já fora esperança, torna-se algema (1.847 mil milhões de amortizações). Ante este cenário, 2024 desenha-se como promessa de redenção e comedimento: previsão de saldo global nulo (0,0%). As receitas aspiram a 14.710 mil milhões, igualadas pelas despesas de 14.692 mil milhões. Aqui, a prudência, quasi espartana, impõe-se como desígnio supremo: um orçamentalíssimo equilibrado para reinstaurar a resiliência estrutural.
Não obstante este caminho sinuoso, algumas verdades hão de ser proclamadas:
■ O volume das receitas tributárias conhece um salto colossal, de 3.203 mil milhões em 2017 para 13.050 mil milhões em 2024, num esforço hercúleo de diversificação da fonte de rendimentos.
■ As despesas com pessoal, ora 1.528 mil milhões em 2017, convertem-se em 3.062 mil milhões em 2024, espelhando a rigidez estrutural da folha salarial pública.
■ Os encargos da dívida, por seu turno, agigantam-se como titãs indomáveis: de 687 mil milhões para 4.558 mil milhões em sete anos.
A interpretação última desta ópera de cifras é clara: Angola, atolada entre a magnificência dos seus recursos e a gravidade das suas amarras financeiras, trava uma luta diuturna pela emancipação económica. A dependência petrolífera, qual espada de Dâmocles(3), paira incessantemente. Torna-se imperativo, tão urgente quanto vital, diversificar a economia e robustecer as instituições. Assim, de 2017 a 2024, desenha-se não apenas uma cronologia de balanços, mas uma verdadeira travessia dantesca: a lenta metamorfose de uma nação que, entre estertores e esperanças, ousa inscrever o seu nome entre as constelações da prosperidade e da liberdade.
1 A fénix, segundo a mitologia clássica, é uma ave mítica que, ao morrer, renasce das próprias cinzas, simbolizando a capacidade de renovação, ressurreição e persistência diante da adversidade.
2 O Parnaso é uma referência à mitologia grega: o Monte Parnaso (ou Parnassus) era considerado morada das musas (divindades inspiradoras das artes e da literatura) e associado à inspiração, excelência, elevação e supremacia cultural (o ponto mais elevado, nobre e dominante das finanças públicas de Angola - o auge, o ápice do poder económico do Estado, quase como uma fonte de inspiração ou salvação financeira).
3 Dâmocles era um cortesão na corte do rei Dionísio II de Siracusa (século IV a.C.). Certa vez, Dâmocles, adulando o rei, afirmou que Dionísio era um homem muito afortunado por gozar de tanto poder e riqueza. Então, para ensinar-lhe uma lição sobre a realidade do poder, Dionísio convidou Dâmocles a trocar de lugar com ele, permitindo-lhe desfrutar de todo o luxo real. Contudo, durante o banquete, Dâmocles percebeu que, sobre sua cabeça, pendia uma espada afiada, suspensa apenas por um fio de crina de cavalo, pronta a cair a qualquer momento. A mensagem era clara: o poder e a riqueza vêm acompanhados de riscos constantes e ameaças invisíveis.